segunda-feira, 14 de março de 2011

Os pilatos e os desbocados

Não sou religiosa, pelo simples fato de que tive pais que seguiam, com fé e convicção, religiões bem diferentes: pai muçulmano (sunita radical, caso isso não seja um pleonasmo) e mãe católica (dos católicos oriundos da Peninsula Ibérica, praticamente ex-queimadores de hereges). Eu e meus irmãos aprendemos que todas as religiões são boas e más a seu tempo, que não faz muita diferença seguir uma ou outra - ou não seguir, como é meu caso -  desde que se seja correto, não se faça mal aos outros e se batalhe por justiça e harmonia, o que, acho, é o que os religiosos em geral pregam.
No entanto, gosto muito de ler sobre as religiões e os livros sagrados - meu mestrado, por exemplo, é sobre a relação entre o discurso bíblico e a obra de uma poeta brasileira. É que  os livros sagrados, a Bíblia, por exemplo, trazem histórias que podem ser aplicadas diariamente na nossa vida; deve ser porque o homem comete atavicamente os mesmos erros, provavelmente  para que sempre esteja se deparando com suas fraquezas e seu senso de justiça. Uma história bíblica de que gosto muito é a do sujeito que, para não se comprometer numa decisão importante (importante para salvar uma vida, inclusive) optou por não se envolver. Todo mundo sabe que se trata do Pilatos, o cara que, sendo uma espécie de juiz, deixou crucificarem Jesus mesmo sem ver culpa no cartório; a expressão que ele usou (ou atribuída a ele), o "lavar as mãos", é metáfora corrente na vida política e na vida comum; é o famoso "tirar o meu da reta".
Bem, o que que tem isso? É que escrevi justamente porque queria dizer algo que não sei se já verbalizei alguma vez: eu detesto os pilatos do cotidiano! Detesto aqueles que dizem "não gosto de me envolver", "se eu falar pode ficar mal para mim", "eu não concordei, mas não quis me meter  porque, afinal, não era diretamente comigo"... E como tem disso;  como tem criaturas que, mesmo diante de injustiças, ainda lavam as mãos na hora em que a única coisa a fazer seria dizer algo firme e justo; nessa hora, calam ou  jogam a incubência a outros; assim, descomprometem-se e ficam de bem com todos.
E conseguem agir assim a vida toda? Geralmente, sim, porque, perto dessas pessoas, sempre há um desbocado, alguém que não se importa em não ficar de bem com todo mundo - porque valoriza muito mais ficar de bem com sua consciência e sua dignidade. (Digo "desbocado" porque geralmente a atitude em questão é verbal.) Estes acabam sendo, para aqueles, os "bodes expiatórios"; o nome - nem todos que  usam sabem - vem da tradição judaica (olha os livros religiosos aí de novo) e refere-se ao animal que era escolhido, em um ritual,  para ser abandonado no deserto carregando simbolicamente todos os pecados do povo. E é essa a função dos desbocados: ao dizer o que outros não dizem, passam a carregar o estigma que é - na nossa sociedade hipócrita - ser considerado um desagregador.

Exemplo: dia desses, num grupo de amigos, um deles, que converteu-se há pouco tempo aos princípios do veganismo - alimentação natural, sem nada de origem animal, para quem não sabe - disse que não participaria de um encontro do grupo porque não suporta ver gente devorando (foi a expressão que ele usou) animais indefesos. Eu, que como um frango e um peixe de vez em quando, e um naco de costela bissextamente, me senti um T-Rex com os dentes cheios de sangue - imagino como se sentiu o resto da turma, os que comem, todo domingo, churrasco mal passado!  Mas fui eu quem falou; me senti na obrigação de dizer que, ainda que os valores dele sejam legítimos e superbacanas, o mundo é feito de diversidade, e respeitar a diversidade é a chave para a paz etc. Resumindo, fui tratada com sarcasmo (ou seja, grosseria velada), respondi num tom a exigir respeito, batemos boca e ficamos de mal (ao menos, eu fiquei).
O curioso é que pouquíssimos dos outros que participaram da discussão -  dois ou três, num grupo de uns dez ou mais - se manifestaram, mas mais para acalmar os ânimos, não para dizer àquele cara que, por exemplo, ele vive nos enviando mensagens sobre matança ilegal de baleias não sei onde, arrecadação de fundos para um asilo de cães abandonados,  abaixo-assinados pelos golfinhos (ou pinguins) de algum lugar remoto,  mas é incapaz de conviver pacificamente com gente!
Alguém tinha que dizer alguma coisa a ele, mas quem? Eu fiz, disse-lhe o que achava  e não me importei com ter brigado com ele: não me interessa ter um amigo que não me respeita. E, se o fato de eu comer carne o choca, lamento - eu não sou tão sensível: eu me choco com quem mata criança, com quem rouba dinheiro público, com quem bate em mulher.
Voltando aos pilatos, esse grupo de amigos (???)  fez seu papel de juiz da Judeia: todo mundo ficou de bem com todos; eu - desbocada - fiquei como a antipática desagregadora.  Não estou chateada, primeiro porque aprendi há tempos que amigos são falíveis, já que são humanos; segundo, porque prefiro que lembrem de mim pelo que digo, não pelo que calo. C'est la vie...