terça-feira, 14 de maio de 2013

Fantasiando de novo

            Não sabia o que fazer com o surpreendente tempo ocioso em um dia de férias de  verão, e surgiu o convite para o espetáculo. Show de um cantor do sudeste, anfiteatro de shopping center lotado, músicas do disco novo de um artista pouco conhecido, mas já admirado – na verdade, se lhe perguntassem que músicas dele mais gostava, não saberia citar nenhuma. O que interessa aqui foi o que aconteceu depois, bem depois do show.
            Ficou com aquele som na cabeça e, sem poder resistir à vontade de voltar a ouvi-lo, comprou os discos do cantor, os que encontrou nas lojas. Procurou na internet coisas sobre ele: história, fatos, letras de música; cadastrou-se no site oficial, apresentando como se fosse velha fã. Já era tarde: estava mais uma vez na vida fantasiando um grande amor. Enciumou-se da vida do ídolo-amor, mas achou bacana que fosse casado com a mesma mulher há tantos anos, que fosse um cara correto, família. E amou-o perdidamente por semanas e semanas: imaginou-se encontrando-o, e ele apaixonando-se também, e os dois vivendo um romance insólito – com direito a temores, titubeios, dúvidas e muito (e bom) sexo.
            Quanta pieguice, parece, não? Não. É só uma forma de viver: virtual, poética, possível só na fantasia. Ou, quem sabe? Ela já se disse mais de uma vez que tem que aprender a temer os seus desejos, pois alguns, originalmente absurdos, já se realizaram. Logo, este não é o primeiro amor platônico; esta não é a primeira viagem demente na fantasia. Não, não é. Ela não sabe bem como surgem – ou surgem de modo ordinário, como surge o amor: sem explicação nem aviso prévio. É que ela já esqueceu as coisas do amor: viveu poucos e sem grandes exaltações, romances banais, quase todos com homens irremediavelmente banais. Justiça seja feita, ela nunca desejou príncipes, mas, ah,  como lhe couberam sapos, homens fracos, com pouquíssima ou nenhuma poesia, incipiente conteúdo  literário, político, cultural – ou, alguns até com alguma ilustração, mas ir-re-cu-pe-ra-vel-men-te chatos, pouco carisma... É verdade que tem um só  que não faz parte desse elenco – esse foi apenas uma história que teve início, meio e fim, sem maiores dramas, mas com algum resquício de dor, mesmo hoje.
            E assim descobriu-se, um dia, sem tempo para amores, e – sobretudo, e o que é pior – sem desejo de estar novamente no dia a dia, nos palcos – ou arenas – do amor. Decidiu que estava fora, que o pouco (e quase sempre medíocre) que havia vivido  devia de ser sua cota disso que faz com que os poetas escrevam tão bonito. Aí redescobriu a fantasia, e as possibilidades (quem diria?)  interessantes que ela proporciona – e aí chegamos ao começo desta história – o cantor.
Hoje o texto não é meu - é do meu querido Caio F. Abreu. Saudade.

Sem Ana, Blues

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.
Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, pergunrando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava pedir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.
Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais. Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente endurecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar ¿ então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão à Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

]Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés ¿ ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarujá ou Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, transponível e natural em seu fio dental metálico, e por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e  windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.
Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, irrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.

(Caio Fernando Abreu - Sem Ana, Blues – de "Os dragões não conhecem o paraíso")


SIMPLICIDADE NA POESIA*
                                            
Simplicidade, na poesia brasileira é assunto pautado desde os modernistas. Oswald de Andrade certamente conseguiu fazer uma poesia simples em todos os sentidos, pois é uma poesia desprovida de forma e linguagem complexas; o resultado é um texto, aparentemente, bastante despretensioso, se comparado ao de poetas de outras “escolas”; mas a pretensão, em Oswald, na verdade é grande: instaurar uma nova poética. Tem elementos para isso: a brevidade, o humor, a brincadeira com as palavras e com as possibilidades da língua portuguesa.
Temos outras experiências de simplicidade: Manuel Bandeira, lírico e singelo, que nos faz sentir toda sua melancolia e depois nos leva a passear em mundos encantados; Drummond, mestre dos mestres, que fez, como pouquíssimos souberam fazer, poesia a partir das experiências humanas mais pungentes. E há ainda outros, muitos outros; quero lembrar de dois que me interessam especialmente nesta análise: Cora Coralina e Manoel de Barros.
A primeira, literalmente, transforma em poesia suas vivências de mulher interiorana,  de pouco estudo e de enorme sensibilidade, que fez versos sobre fornos de pão, cheiros de temperos, crianças da roça; um “universo caseiro” retratado por essa velhinha miúda, encolhida na casca da idade madura. Cora é a imagem e a voz da simplicidade. O outro é Manoel, o “poeta do Pantanal”, que se apresenta como o alquimista do verbo. A transmutação que Manoel propõe é a de transformar a palavra para recriá-la, explorar todos os seus sentidos, fundi-la aos elementos da natureza, fazê-la delirar, fazê-la romper com o protocolo da língua.
Não coincidentemente, os dois são poetas da intimidade; Cora, da intimidade das suas memórias, e Manoel, da intimidade das palavras e da própria poesia. Disse não coincidentemente porque o espírito que anima a poesia de ambos é, justamente, essa intimidade, essa aproximação que consegue fazer entre o leitor e a palavra poética e que o transporta a uma cozinha de fazenda goiana ou a um banhado pantaneiro. Neles, a intimidade – o tema – é o que configura a simplicidade na poesia, muito mais do que o estilo ou a linguagem.
Em Adélia, a simplicidade se dá, também, através da instauração da intimidade, no caso, a partir da tematização do cotidiano. É comum encontrarmos poemas que abrem portas para o interior da casa, que escancaram a intimidade do corpo, que franqueiam os assuntos de família; isso sem contar que estamos lidando o tempo todo com uma poesia de forte cunho confessional, ou seja, desde o primeiro momento, o eu lírico autoriza o leitor a ser o depositário de seus segredos. O cotidiano é uma das matérias-primas – assim como a memória e o cenário interiorano – dessa poesia. Vejamos, como exemplo, o poema Ensinamento:
        
                                            Minha mãe achava estudo
                                            a coisa mais fina do mundo.
                                            Não é.
                                            A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
                                            Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
                                            ela falou comigo:
                                            “Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
                                            Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
                                            Não me falou em amor.
                                            Essa palavra de luxo.
                                            ( B )

O poema é a recuperação de uma cena, a filha (menina, provavelmente) flagra e registra a demonstração de atenção e de afeto da mãe para com o pai. O cuidado é simples e sincero: a refeição, a água quente e a compaixão para o homem que trabalhava até tarde. Na memória da filha ficaram duas lembranças: a mãe tinha grande admiração por estudo (provavelmente ela não o possuía) e era capaz de finezas que estudo algum poderia ensinar; temos aqui uma recorrente dicotomia que se apresenta nos poemas de Adélia: a pobreza material – representada pela simplicidade do que seria considerado conforto para o pai – tornando-se pouco significante diante da riqueza espiritual, obtida pela percepção da sensibilidade e do afeto da mãe. O ensinamento do título, então, não poderia ser mais sublime, e o momento em que se deu essa transmissão é um daqueles raros instantes de intimidade familiar que podem perdurar para sempre na memória afetiva.
Por um lado, há essa generosidade, essa franqueza do eu lírico, da persona Adélia, para com seu leitor, convidando-o a conhecer seus segredos. Por outro, como é demonstrado no próximo capítulo, essa é a forma de representação dessa poesia: há um eu lírico recorrente que discorre sempre sobre as mesmas coisas; há uma mulher madura que usa essa maturidade, a sua experiência de vida, para fazer poesia. Ela busca na intimidade o caminho para chegar até o leitor; aliás, é justamente pela força da emoção, impressa nesses relatos de suas recordações, que ela atinge o íntimo de cada um que aceita integrar-se a essa experiência sensível que é a sua poesia.
No poema Solar, a seguir, a simplicidade da forma se alia à banalidade – à primeira vista – do conteúdo:
                                 Minha mãe cozinhava exatamente:
                                            arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
                                            Mas cantava.
                                            (OCD)

Considero esse poema um “primo” do anterior no motivo, ao que vou chamar de “aparente / oculto”. No poema anterior, a mãe manifestava algo, a admiração pelo estudo, e ensinava na prática as delicadezas que o estudo não ensina, não sabendo que dava à menina lições preciosas para a vida. Em Solar, um poema alegre já no nome, a memória é acionada para lembrar não as comidas simples saídas do fogão materno, mas a poesia que emanava desse fogão junto com os cheiros de comida e com o canto da mãe. Nos dois poemas temos, então, um dito e um não-dito, demonstrando que sempre há algo a ser revelado sob a cena aparentemente banal (ou comovente). Solar é um poema bastante sensorial, ele “pede”, digamos assim, após ser lido, para ser cheirado, ouvido e, até, saboreado. Tratando da simplicidade desse poema – econômico em palavras como os haicais – acredito que ela existe exatamente por esse garimpo de imagens e sentimentos que produzem tantas sensações com tão poucas palavras. É claro que a mera brevidade não implica simplicidade e concisão, mas no caso deste poema o menos é mais, sim.
Outro aspecto a ser considerado nesse poema é o caráter redentor que apresenta sob a aparência de um texto que “reproduz a opressão feminina”, segundo uma visão feminista: a palavra “mas”, no último verso, é a chave que liberta a mãe do seu ofício alienante. O “exatamente” do primeiro verso remete a uma rotina, mas o nexo adversativo “mas” indica que essa rotina não era prisão: havia música, portanto libertação ali.
A esfinge, o poema que veremos a seguir, é um poema maior, de vinte e dois versos. Nele, Adélia realiza na temática o seu ideal de simplicidade. Nem por isso o poema cai na prolixidade; a poesia de cunho confessional e reflexiva de Adélia é sempre econômica no sentido de não ter “sobras” ou “atavios”, mesmo nos poemas longos, de cinquenta, setenta ou mais versos. Vamos ver, então, A esfinge:
  
                                 Ofélia tem os cabelos tão pretos
                                            como quando casou.
                                            Teve nove filhos, sendo que
                                            tirante um que é homossexual
                                            e outro que mexe com drogas,
                                            os outros vão levando no normal.
                                            Só mudou o penteado e botou dentes.
                                            Não perdeu a cintura, nem
                                            aquele ar de ainda serei feliz,
                                            inocente e malvada
                                            na mesma medida que eu,
                                            que insisto em entender
                                            a vida de Ofélia e a minha.
                                            Ainda hoje passou de calça comprida
                                            a caminho da cidade.
                                            Os manacás cheiravam
                                            como se o mundo não fosse o que é.
                                            Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora.
                                            Não quero contar histórias,
                                            porque história é excremento do tempo.
                                            Queria dizer-lhes é que somos eternos,
                                            eu, Ofélia e os manacás.
                                            ( OP )

Já se pode concluir que, recorrentemente, a persona Adélia se refere a mulheres maduras: quando não é ela própria o assunto do poema, ela traz, pela lembrança, sua mãe, como nos poemas vistos anteriormente; ou apresenta outras mulheres, como a surpreendente Ofélia.
Quem é Ofélia? Não deveria desejar ainda ser feliz? A despeito de que os manacás cheiram tão bem como eles cheiram? São algumas perguntas que a persona coloca diante de si, como se fosse a esfinge dela mesma. O poema começa com a apresentação de Ofélia a partir dos seus “traços de resistência”: o cabelo continua preto; sete, dos nove filhos, levam a vida no normal; não perdeu a cintura. As marcas da vida, em Ofélia – os dois filhos que devem lhe causar sofrimento, os dentes perdidos, a infelicidade – não a impedem de seguir resistindo, de desejar ainda ser feliz, de cultivar a vaidade. E à sua passagem, os manacás cheiram como se o mundo não fosse o que é... Tenho para mim que aí ocorre uma das mais bonitas metáforas de Adélia: Ofélia está para a vida assim como os manacás estão para o mundo; Ofélia é faceira e bela, apesar da idade e do sofrimento e continua inscrita na esperança de felicidade; os manacás perfumam o mundo, mesmo ele não sendo perfeito e justo!
As “histórias” que não valem a pena de ser contadas são a de Ofélia, a de Adélia, a de Amélia, a minha ou a de qualquer um, porque elas serão sempre parecidas em suas nuances de alegrias e tristezas; o que interessa, na realidade, segundo este poema, é exibir – como troféus – as marcas de resistência do vivido e como conseguir transcender nossas próprias histórias, nos tornando mais fortes do que elas: eternos.
É isso que o eu lírico diz nos versos finais; mas, mesmo que a persona diga não querer contar histórias, ela própria é uma história, uma experiência vivida, matéria para esta poesia produzida por outra mulher, a poeta. Este subcapítulo é relativo ao tema do cotidiano, do íntimo e do doméstico; não por acaso, todos os poemas citados até aqui tratam de mulheres, mulheres não jovens que têm ou tiveram coisas para ensinar. Esses ensinamentos são, na verdade, coisas muito simples: nenhuma passagem secreta se abre com eles, nenhuma montanha revela tesouros com eles. Como os ensinamentos transmitidos pela antigas parábolas que se contava às crianças, os transmitidos por estas mulheres são sutis e singelos, simples como a vida.
É insistente, nesta poeta, a ideia de ensinamento, educação através da poesia. Isto é um dos traços que distancia Adélia de grande parte de seus contemporâneos que defendem a concepção da função estética como a única possibilidade da poesia. Werner Jaeger, em Paidéia[1], conta que era opinião geral, no tempo de Platão, a crença de que Homero fora o educador de toda a Grécia; nem mesmo a crítica filosófica do próprio Platão conseguiu limitar o influxo e o valor pedagógico da poesia. Segundo Jaeger, é um dogma moderno a autonomia puramente estética da arte; para os gregos antigos não deveria haver cisão entre a ética e a estética. Mais tarde, segundo ele, o Cristianismo
converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de educação e fonte de prazer (Jaeger, p. 62).

              Jaeger observa, sobre a função educadora da poesia, que esta
só pode exercer uma tal ação se faz valer todas as forças estéticas e éticas do homem. Porém a relação entre os aspectos ético e estético não consiste só no fato de o ético nos ser dado como matéria acidental, alheia ao desígnio essencial propriamente artístico, mas sim no fato de o conteúdo normativo e a forma artística da obra de arte estarem em interação e terem até na sua parte mais íntima  uma raiz comum.(op. cit, loc. cit)

No caso da poesia de Adélia, os conteúdos ético e estético, citados por Jaeger, apresentam-se inequivocamente interligados desde o primeiro momento dessa poesia. Tenho para mim que há um traço muito particular nesses poemas, ao qual posso chamar de autenticidade. Explico: é facilmente perceptível, em todos os poemas citados, em alguma medida, algum grau de sofrimento (melancolia, perda, morte); pois é – na minha leitura – essa espontaneidade e naturalidade em apresentar a dor (sem fazer dela o assunto principal) que confere ao eu lírico uma confiabilidade. Esse eu lírico não quer a simpatia do seu interlocutor pelo recurso da comoção; ele quer dividir vivências, ele manifesta  uma necessidade disso[2].   
Ainda sobre simplicidade, há um poema que trata da relação poeta / mulher comum, o antes e o depois da feitura de um livro e o receio de se perder a simplicidade, a espontaneidade ou a própria poesia. É o poema Fluência:
                                 Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,                 
                                            não perdi a poesia.
                                            Hoje depois da festa,
                                            quando me levantei para fazer o café,
                                            uma densa neblina acinzentava os pastos,
                                            as casas, as pessoas com embrulho de pão.
                                            O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
                                            Persistindo a necessidade dos relógios,
                                            dos descongestionantes nasais.
                                            Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
                                            com os pardais, os urinóis pela metade,
                                            o antigo e intenso desejar de um verso.
                                            O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
                                            Como antes, graças a Deus.
                                            ( OCD )

Fluência é um daqueles poemas que se classificam como poética, porque seu assunto é a própria poesia, e nele o eu lírico coloca-se como poeta. Mas, mais do que sobre poesia, esse poema trata da transmissão da poesia para os outros, da transformação do particular – do íntimo – para o geral e público.
O sétimo verso diz: O fio indesmanchável da vida tecia seu curso. Indesmanchável está no mesmo plano que eterno no poema anterior; e há mais uma vez uma ideia de resistência. A despeito de todo o processo de feitura de um livro, a despeito do grandioso e do importante que isso possa ser, a vida segue seu curso. O antes e o depois do acontecimento especial (o livro é festejado) são absolutamente iguais, para apaziguar os receios da escritora. Ela dá graças, no final do poema, por ter conseguido não perturbar o fluxo normal das coisas: seu livro contraponteava exato com a vida banal, com o cotidiano, com os urinóis até. Essa menção ao “pouco poético” objeto me traz à lembrança versos de João Cabral de Melo Neto, em Antiode, poema com o qual este contraponteia harmoniosamente:

                                 Poesia, te escrevia:
                                            flor! conhecendo
                                             que és fezes. Fezes
                                            como qualquer,
                                            (...)[3]

O poema de João Cabral tem como subtítulo o “aviso” contra a poesia dita profunda; em Adélia não há, inicialmente, o propósito de discutir o caráter profundo da poesia. Há, isto sim, o propósito de defender a poesia como atividade perfeitamente associada e associável ao cotidiano. Não é esta a única referência, neste trabalho, à compreensão “adeliana” de poesia e de criação poética como fatos espontâneos e naturais, comparados às necessidades do corpo e do espírito. Ainda sobre o poema Fluência,  não é esse o único texto de Adélia em que encontraremos o assunto poesia vizinho do assunto escatologia; há até uma certa rudeza[4] em alguns momentos, na ênfase da defesa dessa naturalidade da criação poética.
Dessa forma, então, desenvolve-se o tema do cotidiano; observamos que ele se apresenta  como recurso – forte e apelativo – do ideal de simplicidade e autenticidade do eu lírico e colabora, ainda, de maneira eficaz para a instauração da intimidade entre ele e o interlocutor / leitor.  É conveniente, ainda,  comentar um dado curioso. A forma moderna dos poemas de Adélia (prosaicos, incorporando palavras baixas e cotidianas para tratar do sublime) é um procedimento literário que se articula com os modernistas,  como Oswald de Andrade, citado no início deste tópico; ao mesmo tempo, o conteúdo e a forma desses poemas são contrários ao que a Modernidade traz, como o progresso.

 
* Fragmento da dissertação "Um país de memória e sentimento: alguns temas em AdéliaPrado (Fátima Áli - UFRGS - 2012)

                [1]  JAEGER, Werner. Paideia - A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[2] A respeito de simpatia, pode-se duvidar que esse eu lírico queira a nossa, já que em alguns momentos ele não facilita muito para ser entendido, e em outros parece desejar estar sozinho, divagando absorto em si mesmo.  Mas é claro que esse é um truque da poeta.

[3] MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas (1940-1965). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. Foi citado o primeiro quarteto do poema.
[4] Em Cacos para um vitral (Op. Cit.), texto de Adélia Prado catalogado como romance, há um fragmento em que a personagem, escritora e dona de casa, discorre a respeito da poesia:
       “A poesia é meio burra, estúpida, incomoda como um cocô de criança na sala de visitas. Um cocô não é produto meu, enquanto não posso escolher fazer ele ou não. Ele se faz dentro de mim (horror). Portanto, ouro = poesia = fezes =obra divina. Poesia ruim, esta sim, cocô de minha própria autoria, vergonha inominável. Tenho vontade de partir os queixos dos poetas que se acreditam criadores de sua própria  obra. Vaidosos demais, não se veem apenas portadores, vasos (vaso remete a vaso sanitário e/ou a vaso sagrado que contém o precioso sangue). Uma vez rotularam-me escatológica. Inflei de orgulho até que me apresentassem aos vários sentidos desta palavra esquipática  (que não sei o que é, mas que cai onomatopaicamente bem neste contexto). Tinham todos razão. me interessa o fim, que é igual ao princípio. O meio é divertimento, lacrimoso teatro, intervalo, interregno, ensaio geral, piquenique dificultoso, onde fatos memoráveis acontecem.”
         Nesse livro, a personagem-narradora é alguém extremamente preocupada em descobrir significados para tudo o que vivencia. Em verdade, é muito parecida com a persona recorrente na poesia de Adélia, na sua maneira de lidar com os assuntos sobre os quais discorre, como esta divagação sobre poesia. É importante atentar para a preocupação da personagem em associar Deus à poesia (lembremos que, no poema Fluência, o final é um agradecimento a Deus).