terça-feira, 20 de março de 2012

Sísifo?

(...) a escrita constitui como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo. Foucault
O mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos (...) Mircea Eliade
Não sei por  que alguém cria um blog, para depois abandoná-lo – não mal comparando, é como adotar um animal de estimação e depois largá-lo, por fastio... Os defensores de animais  vão achar horrível a comparação (ok, ok, eu também gosto de animais; sobretudo, amo minha gata Zé, mas acho seres humanos mais merecedores da minha piedade e solidariedade), mas explico.  Quando a gente (eu, ao menos) decide escrever um blog,  decide compartilhar um universo (tanto assim?) de coisas internas ou internalizadas, o que faz com que tanto começar quanto interromper  sejam compromissos sério.
Eu interrompi o Trouxeste a chave logo no começo, com umas poucas postagens; lamento essa interrupção, mas a justificativa é (acho) plausível: estava sem palavras, como nunca estive antes (boas ou más, palavras nunca me faltaram).  Vou contar.  Na metade de 2012 recebi um diagnóstico de câncer de mama (o nome técnico é carcinoma ductal invasivo); então, desde lá, passei por todo o tratamento mais ou menos comum nesses casos: cirurgias, fisioterapia, quimioterapia. Hoje estou na fase de tratamento de controle (que constitui numa medicação diária, praticamente sem efeito colateral) e estou bem, obrigada. Mas contei isso para dizer que perdi as palavras nesse período de tratamento: simplesmente não conseguia escrever nada; por outro lado, li muito; há muito tempo não lia tanto – até porque tinha tempo livre para isso, já que estava sem trabalhar. Mas, e a mudez? E a incapacidade de escrever? Não sei. Quem tiver alguma hipótese me fale.
Ninguém  pense que  não tive vontade de escrever, nesse tempo em que não escrevi – pelo contrário, tive muita. E uma figura  me vinha recorrentemente à ideia: Sísifo, o mito, o  “mais esperto dos mortais”, que tentou (e conseguiu) enganar os deuses e a própria morte mais de uma vez.  Sísifo também  é conhecido como o homem que (como castigo) rolava uma pedra para o alto de uma montanha, então a pedra caía, e ele voltava a rolá-la, infinitamente, numa rotina eterna. 
O que tem Sísifo com minha história e vontade de escrever? Era como eu estava me sentindo: estranha, carregada de culpa talvez, como quem desafia os deuses e sabe que sofrerá um castigo a qualquer momento.  Alguém dirá que a doença já tinha sido o castigo –  eu digo que não: a doença foi só uma circunstância (é o Imponderável de Almeida, que podemos vir a conhecer a qualquer momento); a cura / o tratamento, isso sim  é  obra de muitos “sísifos”: cientistas, médicos, sem deixar de falar em meus amigos, que torceram fervorosamente por mim, e – óbvio – obra minha também.
Creio que desafiar o destino, a morte, o traçado imponderável e inimaginável é algo que o ser humano sempre fez e faz atavicamente – ora, existe até um mito que fala disso! Estar na pele do desafiante é que é assustador: e se eu vencer, me caberá o quê?  Vou confessar: não tive medo da doença, mas – agora que a superei (ou pelo menos superei sua parte mais dura) – tenho me sentido, não poucas vezes,  como se empurrasse  uma grande pedra montanha acima.

Um comentário:

  1. Boa tarde,sou Priscila Medina e fui sua aluna na FARGS, logo fiquei sabendo da luta que por hora enfrentara.Muito bom saber que estás bem.
    Suas aulas, embora eu tenha tido poucas, são ótimas, és talentosa, tens um ótimo gosto para leitura,escreves divinamente e, aproveitando, compartilho contigo o gosto por Guimarães Rosa.

    Um ótimo restante de semana,

    "A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos"
    George Bernard Shaw
    Priscila Medina

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