terça-feira, 14 de maio de 2013

SIMPLICIDADE NA POESIA*
                                            
Simplicidade, na poesia brasileira é assunto pautado desde os modernistas. Oswald de Andrade certamente conseguiu fazer uma poesia simples em todos os sentidos, pois é uma poesia desprovida de forma e linguagem complexas; o resultado é um texto, aparentemente, bastante despretensioso, se comparado ao de poetas de outras “escolas”; mas a pretensão, em Oswald, na verdade é grande: instaurar uma nova poética. Tem elementos para isso: a brevidade, o humor, a brincadeira com as palavras e com as possibilidades da língua portuguesa.
Temos outras experiências de simplicidade: Manuel Bandeira, lírico e singelo, que nos faz sentir toda sua melancolia e depois nos leva a passear em mundos encantados; Drummond, mestre dos mestres, que fez, como pouquíssimos souberam fazer, poesia a partir das experiências humanas mais pungentes. E há ainda outros, muitos outros; quero lembrar de dois que me interessam especialmente nesta análise: Cora Coralina e Manoel de Barros.
A primeira, literalmente, transforma em poesia suas vivências de mulher interiorana,  de pouco estudo e de enorme sensibilidade, que fez versos sobre fornos de pão, cheiros de temperos, crianças da roça; um “universo caseiro” retratado por essa velhinha miúda, encolhida na casca da idade madura. Cora é a imagem e a voz da simplicidade. O outro é Manoel, o “poeta do Pantanal”, que se apresenta como o alquimista do verbo. A transmutação que Manoel propõe é a de transformar a palavra para recriá-la, explorar todos os seus sentidos, fundi-la aos elementos da natureza, fazê-la delirar, fazê-la romper com o protocolo da língua.
Não coincidentemente, os dois são poetas da intimidade; Cora, da intimidade das suas memórias, e Manoel, da intimidade das palavras e da própria poesia. Disse não coincidentemente porque o espírito que anima a poesia de ambos é, justamente, essa intimidade, essa aproximação que consegue fazer entre o leitor e a palavra poética e que o transporta a uma cozinha de fazenda goiana ou a um banhado pantaneiro. Neles, a intimidade – o tema – é o que configura a simplicidade na poesia, muito mais do que o estilo ou a linguagem.
Em Adélia, a simplicidade se dá, também, através da instauração da intimidade, no caso, a partir da tematização do cotidiano. É comum encontrarmos poemas que abrem portas para o interior da casa, que escancaram a intimidade do corpo, que franqueiam os assuntos de família; isso sem contar que estamos lidando o tempo todo com uma poesia de forte cunho confessional, ou seja, desde o primeiro momento, o eu lírico autoriza o leitor a ser o depositário de seus segredos. O cotidiano é uma das matérias-primas – assim como a memória e o cenário interiorano – dessa poesia. Vejamos, como exemplo, o poema Ensinamento:
        
                                            Minha mãe achava estudo
                                            a coisa mais fina do mundo.
                                            Não é.
                                            A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
                                            Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
                                            ela falou comigo:
                                            “Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
                                            Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
                                            Não me falou em amor.
                                            Essa palavra de luxo.
                                            ( B )

O poema é a recuperação de uma cena, a filha (menina, provavelmente) flagra e registra a demonstração de atenção e de afeto da mãe para com o pai. O cuidado é simples e sincero: a refeição, a água quente e a compaixão para o homem que trabalhava até tarde. Na memória da filha ficaram duas lembranças: a mãe tinha grande admiração por estudo (provavelmente ela não o possuía) e era capaz de finezas que estudo algum poderia ensinar; temos aqui uma recorrente dicotomia que se apresenta nos poemas de Adélia: a pobreza material – representada pela simplicidade do que seria considerado conforto para o pai – tornando-se pouco significante diante da riqueza espiritual, obtida pela percepção da sensibilidade e do afeto da mãe. O ensinamento do título, então, não poderia ser mais sublime, e o momento em que se deu essa transmissão é um daqueles raros instantes de intimidade familiar que podem perdurar para sempre na memória afetiva.
Por um lado, há essa generosidade, essa franqueza do eu lírico, da persona Adélia, para com seu leitor, convidando-o a conhecer seus segredos. Por outro, como é demonstrado no próximo capítulo, essa é a forma de representação dessa poesia: há um eu lírico recorrente que discorre sempre sobre as mesmas coisas; há uma mulher madura que usa essa maturidade, a sua experiência de vida, para fazer poesia. Ela busca na intimidade o caminho para chegar até o leitor; aliás, é justamente pela força da emoção, impressa nesses relatos de suas recordações, que ela atinge o íntimo de cada um que aceita integrar-se a essa experiência sensível que é a sua poesia.
No poema Solar, a seguir, a simplicidade da forma se alia à banalidade – à primeira vista – do conteúdo:
                                 Minha mãe cozinhava exatamente:
                                            arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
                                            Mas cantava.
                                            (OCD)

Considero esse poema um “primo” do anterior no motivo, ao que vou chamar de “aparente / oculto”. No poema anterior, a mãe manifestava algo, a admiração pelo estudo, e ensinava na prática as delicadezas que o estudo não ensina, não sabendo que dava à menina lições preciosas para a vida. Em Solar, um poema alegre já no nome, a memória é acionada para lembrar não as comidas simples saídas do fogão materno, mas a poesia que emanava desse fogão junto com os cheiros de comida e com o canto da mãe. Nos dois poemas temos, então, um dito e um não-dito, demonstrando que sempre há algo a ser revelado sob a cena aparentemente banal (ou comovente). Solar é um poema bastante sensorial, ele “pede”, digamos assim, após ser lido, para ser cheirado, ouvido e, até, saboreado. Tratando da simplicidade desse poema – econômico em palavras como os haicais – acredito que ela existe exatamente por esse garimpo de imagens e sentimentos que produzem tantas sensações com tão poucas palavras. É claro que a mera brevidade não implica simplicidade e concisão, mas no caso deste poema o menos é mais, sim.
Outro aspecto a ser considerado nesse poema é o caráter redentor que apresenta sob a aparência de um texto que “reproduz a opressão feminina”, segundo uma visão feminista: a palavra “mas”, no último verso, é a chave que liberta a mãe do seu ofício alienante. O “exatamente” do primeiro verso remete a uma rotina, mas o nexo adversativo “mas” indica que essa rotina não era prisão: havia música, portanto libertação ali.
A esfinge, o poema que veremos a seguir, é um poema maior, de vinte e dois versos. Nele, Adélia realiza na temática o seu ideal de simplicidade. Nem por isso o poema cai na prolixidade; a poesia de cunho confessional e reflexiva de Adélia é sempre econômica no sentido de não ter “sobras” ou “atavios”, mesmo nos poemas longos, de cinquenta, setenta ou mais versos. Vamos ver, então, A esfinge:
  
                                 Ofélia tem os cabelos tão pretos
                                            como quando casou.
                                            Teve nove filhos, sendo que
                                            tirante um que é homossexual
                                            e outro que mexe com drogas,
                                            os outros vão levando no normal.
                                            Só mudou o penteado e botou dentes.
                                            Não perdeu a cintura, nem
                                            aquele ar de ainda serei feliz,
                                            inocente e malvada
                                            na mesma medida que eu,
                                            que insisto em entender
                                            a vida de Ofélia e a minha.
                                            Ainda hoje passou de calça comprida
                                            a caminho da cidade.
                                            Os manacás cheiravam
                                            como se o mundo não fosse o que é.
                                            Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora.
                                            Não quero contar histórias,
                                            porque história é excremento do tempo.
                                            Queria dizer-lhes é que somos eternos,
                                            eu, Ofélia e os manacás.
                                            ( OP )

Já se pode concluir que, recorrentemente, a persona Adélia se refere a mulheres maduras: quando não é ela própria o assunto do poema, ela traz, pela lembrança, sua mãe, como nos poemas vistos anteriormente; ou apresenta outras mulheres, como a surpreendente Ofélia.
Quem é Ofélia? Não deveria desejar ainda ser feliz? A despeito de que os manacás cheiram tão bem como eles cheiram? São algumas perguntas que a persona coloca diante de si, como se fosse a esfinge dela mesma. O poema começa com a apresentação de Ofélia a partir dos seus “traços de resistência”: o cabelo continua preto; sete, dos nove filhos, levam a vida no normal; não perdeu a cintura. As marcas da vida, em Ofélia – os dois filhos que devem lhe causar sofrimento, os dentes perdidos, a infelicidade – não a impedem de seguir resistindo, de desejar ainda ser feliz, de cultivar a vaidade. E à sua passagem, os manacás cheiram como se o mundo não fosse o que é... Tenho para mim que aí ocorre uma das mais bonitas metáforas de Adélia: Ofélia está para a vida assim como os manacás estão para o mundo; Ofélia é faceira e bela, apesar da idade e do sofrimento e continua inscrita na esperança de felicidade; os manacás perfumam o mundo, mesmo ele não sendo perfeito e justo!
As “histórias” que não valem a pena de ser contadas são a de Ofélia, a de Adélia, a de Amélia, a minha ou a de qualquer um, porque elas serão sempre parecidas em suas nuances de alegrias e tristezas; o que interessa, na realidade, segundo este poema, é exibir – como troféus – as marcas de resistência do vivido e como conseguir transcender nossas próprias histórias, nos tornando mais fortes do que elas: eternos.
É isso que o eu lírico diz nos versos finais; mas, mesmo que a persona diga não querer contar histórias, ela própria é uma história, uma experiência vivida, matéria para esta poesia produzida por outra mulher, a poeta. Este subcapítulo é relativo ao tema do cotidiano, do íntimo e do doméstico; não por acaso, todos os poemas citados até aqui tratam de mulheres, mulheres não jovens que têm ou tiveram coisas para ensinar. Esses ensinamentos são, na verdade, coisas muito simples: nenhuma passagem secreta se abre com eles, nenhuma montanha revela tesouros com eles. Como os ensinamentos transmitidos pela antigas parábolas que se contava às crianças, os transmitidos por estas mulheres são sutis e singelos, simples como a vida.
É insistente, nesta poeta, a ideia de ensinamento, educação através da poesia. Isto é um dos traços que distancia Adélia de grande parte de seus contemporâneos que defendem a concepção da função estética como a única possibilidade da poesia. Werner Jaeger, em Paidéia[1], conta que era opinião geral, no tempo de Platão, a crença de que Homero fora o educador de toda a Grécia; nem mesmo a crítica filosófica do próprio Platão conseguiu limitar o influxo e o valor pedagógico da poesia. Segundo Jaeger, é um dogma moderno a autonomia puramente estética da arte; para os gregos antigos não deveria haver cisão entre a ética e a estética. Mais tarde, segundo ele, o Cristianismo
converteu a avaliação puramente estética da poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de educação e fonte de prazer (Jaeger, p. 62).

              Jaeger observa, sobre a função educadora da poesia, que esta
só pode exercer uma tal ação se faz valer todas as forças estéticas e éticas do homem. Porém a relação entre os aspectos ético e estético não consiste só no fato de o ético nos ser dado como matéria acidental, alheia ao desígnio essencial propriamente artístico, mas sim no fato de o conteúdo normativo e a forma artística da obra de arte estarem em interação e terem até na sua parte mais íntima  uma raiz comum.(op. cit, loc. cit)

No caso da poesia de Adélia, os conteúdos ético e estético, citados por Jaeger, apresentam-se inequivocamente interligados desde o primeiro momento dessa poesia. Tenho para mim que há um traço muito particular nesses poemas, ao qual posso chamar de autenticidade. Explico: é facilmente perceptível, em todos os poemas citados, em alguma medida, algum grau de sofrimento (melancolia, perda, morte); pois é – na minha leitura – essa espontaneidade e naturalidade em apresentar a dor (sem fazer dela o assunto principal) que confere ao eu lírico uma confiabilidade. Esse eu lírico não quer a simpatia do seu interlocutor pelo recurso da comoção; ele quer dividir vivências, ele manifesta  uma necessidade disso[2].   
Ainda sobre simplicidade, há um poema que trata da relação poeta / mulher comum, o antes e o depois da feitura de um livro e o receio de se perder a simplicidade, a espontaneidade ou a própria poesia. É o poema Fluência:
                                 Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,                 
                                            não perdi a poesia.
                                            Hoje depois da festa,
                                            quando me levantei para fazer o café,
                                            uma densa neblina acinzentava os pastos,
                                            as casas, as pessoas com embrulho de pão.
                                            O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
                                            Persistindo a necessidade dos relógios,
                                            dos descongestionantes nasais.
                                            Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
                                            com os pardais, os urinóis pela metade,
                                            o antigo e intenso desejar de um verso.
                                            O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
                                            Como antes, graças a Deus.
                                            ( OCD )

Fluência é um daqueles poemas que se classificam como poética, porque seu assunto é a própria poesia, e nele o eu lírico coloca-se como poeta. Mas, mais do que sobre poesia, esse poema trata da transmissão da poesia para os outros, da transformação do particular – do íntimo – para o geral e público.
O sétimo verso diz: O fio indesmanchável da vida tecia seu curso. Indesmanchável está no mesmo plano que eterno no poema anterior; e há mais uma vez uma ideia de resistência. A despeito de todo o processo de feitura de um livro, a despeito do grandioso e do importante que isso possa ser, a vida segue seu curso. O antes e o depois do acontecimento especial (o livro é festejado) são absolutamente iguais, para apaziguar os receios da escritora. Ela dá graças, no final do poema, por ter conseguido não perturbar o fluxo normal das coisas: seu livro contraponteava exato com a vida banal, com o cotidiano, com os urinóis até. Essa menção ao “pouco poético” objeto me traz à lembrança versos de João Cabral de Melo Neto, em Antiode, poema com o qual este contraponteia harmoniosamente:

                                 Poesia, te escrevia:
                                            flor! conhecendo
                                             que és fezes. Fezes
                                            como qualquer,
                                            (...)[3]

O poema de João Cabral tem como subtítulo o “aviso” contra a poesia dita profunda; em Adélia não há, inicialmente, o propósito de discutir o caráter profundo da poesia. Há, isto sim, o propósito de defender a poesia como atividade perfeitamente associada e associável ao cotidiano. Não é esta a única referência, neste trabalho, à compreensão “adeliana” de poesia e de criação poética como fatos espontâneos e naturais, comparados às necessidades do corpo e do espírito. Ainda sobre o poema Fluência,  não é esse o único texto de Adélia em que encontraremos o assunto poesia vizinho do assunto escatologia; há até uma certa rudeza[4] em alguns momentos, na ênfase da defesa dessa naturalidade da criação poética.
Dessa forma, então, desenvolve-se o tema do cotidiano; observamos que ele se apresenta  como recurso – forte e apelativo – do ideal de simplicidade e autenticidade do eu lírico e colabora, ainda, de maneira eficaz para a instauração da intimidade entre ele e o interlocutor / leitor.  É conveniente, ainda,  comentar um dado curioso. A forma moderna dos poemas de Adélia (prosaicos, incorporando palavras baixas e cotidianas para tratar do sublime) é um procedimento literário que se articula com os modernistas,  como Oswald de Andrade, citado no início deste tópico; ao mesmo tempo, o conteúdo e a forma desses poemas são contrários ao que a Modernidade traz, como o progresso.

 
* Fragmento da dissertação "Um país de memória e sentimento: alguns temas em AdéliaPrado (Fátima Áli - UFRGS - 2012)

                [1]  JAEGER, Werner. Paideia - A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[2] A respeito de simpatia, pode-se duvidar que esse eu lírico queira a nossa, já que em alguns momentos ele não facilita muito para ser entendido, e em outros parece desejar estar sozinho, divagando absorto em si mesmo.  Mas é claro que esse é um truque da poeta.

[3] MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas (1940-1965). Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. Foi citado o primeiro quarteto do poema.
[4] Em Cacos para um vitral (Op. Cit.), texto de Adélia Prado catalogado como romance, há um fragmento em que a personagem, escritora e dona de casa, discorre a respeito da poesia:
       “A poesia é meio burra, estúpida, incomoda como um cocô de criança na sala de visitas. Um cocô não é produto meu, enquanto não posso escolher fazer ele ou não. Ele se faz dentro de mim (horror). Portanto, ouro = poesia = fezes =obra divina. Poesia ruim, esta sim, cocô de minha própria autoria, vergonha inominável. Tenho vontade de partir os queixos dos poetas que se acreditam criadores de sua própria  obra. Vaidosos demais, não se veem apenas portadores, vasos (vaso remete a vaso sanitário e/ou a vaso sagrado que contém o precioso sangue). Uma vez rotularam-me escatológica. Inflei de orgulho até que me apresentassem aos vários sentidos desta palavra esquipática  (que não sei o que é, mas que cai onomatopaicamente bem neste contexto). Tinham todos razão. me interessa o fim, que é igual ao princípio. O meio é divertimento, lacrimoso teatro, intervalo, interregno, ensaio geral, piquenique dificultoso, onde fatos memoráveis acontecem.”
         Nesse livro, a personagem-narradora é alguém extremamente preocupada em descobrir significados para tudo o que vivencia. Em verdade, é muito parecida com a persona recorrente na poesia de Adélia, na sua maneira de lidar com os assuntos sobre os quais discorre, como esta divagação sobre poesia. É importante atentar para a preocupação da personagem em associar Deus à poesia (lembremos que, no poema Fluência, o final é um agradecimento a Deus).

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