terça-feira, 14 de maio de 2013

Fantasiando de novo

            Não sabia o que fazer com o surpreendente tempo ocioso em um dia de férias de  verão, e surgiu o convite para o espetáculo. Show de um cantor do sudeste, anfiteatro de shopping center lotado, músicas do disco novo de um artista pouco conhecido, mas já admirado – na verdade, se lhe perguntassem que músicas dele mais gostava, não saberia citar nenhuma. O que interessa aqui foi o que aconteceu depois, bem depois do show.
            Ficou com aquele som na cabeça e, sem poder resistir à vontade de voltar a ouvi-lo, comprou os discos do cantor, os que encontrou nas lojas. Procurou na internet coisas sobre ele: história, fatos, letras de música; cadastrou-se no site oficial, apresentando como se fosse velha fã. Já era tarde: estava mais uma vez na vida fantasiando um grande amor. Enciumou-se da vida do ídolo-amor, mas achou bacana que fosse casado com a mesma mulher há tantos anos, que fosse um cara correto, família. E amou-o perdidamente por semanas e semanas: imaginou-se encontrando-o, e ele apaixonando-se também, e os dois vivendo um romance insólito – com direito a temores, titubeios, dúvidas e muito (e bom) sexo.
            Quanta pieguice, parece, não? Não. É só uma forma de viver: virtual, poética, possível só na fantasia. Ou, quem sabe? Ela já se disse mais de uma vez que tem que aprender a temer os seus desejos, pois alguns, originalmente absurdos, já se realizaram. Logo, este não é o primeiro amor platônico; esta não é a primeira viagem demente na fantasia. Não, não é. Ela não sabe bem como surgem – ou surgem de modo ordinário, como surge o amor: sem explicação nem aviso prévio. É que ela já esqueceu as coisas do amor: viveu poucos e sem grandes exaltações, romances banais, quase todos com homens irremediavelmente banais. Justiça seja feita, ela nunca desejou príncipes, mas, ah,  como lhe couberam sapos, homens fracos, com pouquíssima ou nenhuma poesia, incipiente conteúdo  literário, político, cultural – ou, alguns até com alguma ilustração, mas ir-re-cu-pe-ra-vel-men-te chatos, pouco carisma... É verdade que tem um só  que não faz parte desse elenco – esse foi apenas uma história que teve início, meio e fim, sem maiores dramas, mas com algum resquício de dor, mesmo hoje.
            E assim descobriu-se, um dia, sem tempo para amores, e – sobretudo, e o que é pior – sem desejo de estar novamente no dia a dia, nos palcos – ou arenas – do amor. Decidiu que estava fora, que o pouco (e quase sempre medíocre) que havia vivido  devia de ser sua cota disso que faz com que os poetas escrevam tão bonito. Aí redescobriu a fantasia, e as possibilidades (quem diria?)  interessantes que ela proporciona – e aí chegamos ao começo desta história – o cantor.

3 comentários:

  1. Texto muito lindo. E muito bem conseguido. Estilo eminentemente flaubertiano, a fazer lembrar a pobre Emma Bovary. Só tenho pena que Charles não a tenha percebido - mas poderia, ele que se movia num mundo tão comezinho e tão prosaico? Pauvre Charles! Pauvre Emma! Parabéns, Fátima!

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  2. Olá Fátima. Gostaria de agradecer sua visita e comentário lá no Doces.
    Gostei do texto. Nos faz pensar e refletir sobre até que ponto nos entregarmos ao mundo da fantasia é bom ou saudável.
    Bjus
    Lia Christo
    www.docesletras.com.br

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    1. Obrigada, Lia!! Que bom que gostaste! E o que seria de nós sem a fantasia...? Bj

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